terça-feira, 1 de novembro de 2011

"O diabo na rua, no meio do redemoinho"



Já fazem alguns meses que tento escrever este post sem sucesso. A verdade é que "Grande Sertões Veredas", de Guimarães Rosa, entrou em mim, bagunçou tudo o que ele foi encontrando pela frente e depois partiu sem deixar explicações. Sentei inúmeras vezes na frente do computador para escrever algo, mas sempre chegava no meio do texto sem saber exatamente o que estava tentando transmitir. Até que percebi que é justamente essa incertitude que faz da obra algo tão genial.

"O diabo na rua, no meio do redemoinho" é a frase constantemente repetida ao longo da narração. Mas de alguma forma, ela não se limita à rua, ao redemoinho, mas termina por invadir também a casa de cada um de nós. Ela nos abre os olhos para a bagunça, o turbilhão de acontecimentos que criamos e que ainda assim nos pega de surpresa. Um ano com 365 dias, 12 meses. Uma expectativa de vida que chega aos 82,25 anos no Japão, 73,2 no Brasil, mas que ainda assim continua tão icerta. Nem a matemática consegue decifrá-la. A rotina se mostra falha, a nossa sede por organização, por previsibilidade morre a cada dia em que ela se diz presente. Lavar o rosto e olhar-se no espelho sabendo que diante dele está a esperança em um mundo melhor. Do sonho que ficou no travesseiro e da realidade que a xícara de café desperta, às vezes sentimos que é difícil identificar qual é a diferença.

"O diabo na rua, no meio do redemoinho". Na rua, e sobre o ombro de cada um de nós. O caminhar até o trabalho é algo poético para mim. Cruzar o olhar com estranhos que também tiveram o despertar induzido por essa vontade de transformar suas vidas. Transformar não como fruto de uma ingratidão diante da vida, de um praguejar eterno de que "isso tudo é uma bosta", mas para que tudo possa continuar avançando.

Perdido nessa reflexão, vejo uma movimentação na padaria da esquina, onde as pessoas ainda se concentravam para terminar o seu café da manhã. Uma correria e de repente um barulho de tiro. Dois encapuzados fogem em uma moto e um senhor caí no chão, sangrando. "O diabo na padaria, no meio do redemoinho".

É finalmente sexta-feira, dia em que a diretoria iria comentar a apresentação da semana passada. "Você viu que o Felipe vai ser promovido? Parece que a diretoria gostou da análise que ele fez sobre a nova tendência do mercado.". O Felipe nunca encostou naqueles papéis que demorei 10 meses para escrever... Indignado, termino a noite num bar, tentando afogar a frase de Guimarães com copos de whisky que parecem surtir apenas um efeito sobre a nitidez de minha visão.

Na volta para casa, ao passar por uma encruzilhada, um mendigo se aproxima e diz: "o diabo na rua, no meio do redemoinho". Assustado, encaro o sujeito que se perde no breu das luzes mal distribuídas da avenida. Não me contenho e grito "EI! EI! O que o senhor disse?!" Ele não se vira, mas começa a correr. Empurrando o seu carrinho de super mercado repleto de tralhas, o barulho das rodinhas no asfalto me guiam ao desconhecido. "EI! EI!". Ao atravessar a rua, sou atingido em cheio por um carro de traseira preta, a última imagem que me lembro.

Acordo em um leito no hospital. Uma sede de vingança me domina; quero devolver ao mundo toda a ingratidão que até então recebi, encarnar em mim mesmo a frase que tanto queria evitar. "O diabo na rua, no meio do redemoinho". No ápice da loucura, minha filhinha que não via há alguns meses entra pela porta me trazendo um buque de flores. "Sare logo, papai", dizia o cartão com letras garrafais e de linhas bem tortas. O "S" de "sare" estava carinhosamente invertido. Ao meu lado reconheci o senhor da padaria, que me indicou com um olhar um segundo cartão de melhoras, dessa vez assinado pelo Felipe.

Hoje, a cada vez que me coloco frente ao espelho para lavar o rosto, encaro-me e me digo em voz alta "o diabo na rua, no meio do redemoinho". E saio de casa com um sorriso que nunca tive antes.



Termino com uma música de Gil Scott, que a cada vez que a escuto, me joga de volta para esse universo incompreensível:

Gil Scott - Me and the devil

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Foals

Quando eu demoro muito pra postar algo, encho linguiça com música, o que no fundo não é tão chato, pra mim pelo menos.
Só pra deixar registrado, faz um tempo já que acabei de ler Grande Sertão Veredas e estou digerindo ainda algum texto para colocar aqui. Acho que vai sair em breve =)

Foals é uma banda britânica que curto muito. Eles abriram o show do Red Hot em SP e infelizmente não foram muito bem recebidos. Sinceramente, acho que simplesmente porque o som deles não tem muito a ver com o som do Red Hot... Além disso, acredito que o vocal deles tem muito peso nas suas músicas e quem sabe o fato de ser uma apresentação ao vivo tenha destruído um pouco esse lado.



Breve descrição (direto da wikipédia): Foals are an English indie rock band from Oxford. They are currently signed to Transgressive Records in the UK and Sub Pop in the US. They released their debut album Antidotes on 24 March 2008 in the UK, and 8 April 2008 in the US.[1] The band's second album, Total Life Forever, was released on the 10 May 2010 and was nominated for the 2010 Mercury Prize.

Website do grupo

Blue Blood, do álbum "Total Life Forever"



Spanish Sahara, também do álbum "Total Life Forever"

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Os olhos de Cesare Battisti

     Recentemente li uma reportagem sobre Cesare Battisti na revista Piauí. Não quero tomar aqui nenhuma posição sobre as atitudes de cada autoridade, brasileira e italiana, ou sobre o que deveria de fato ser decidido sobre sua situação legal. Quero apenas compartilhar um sentimento que enxerguei naquele homem e que tenho certeza de que é comum a todos nós.
     A reportagem começa narrando o lugar onde se deu a entrevista: na praia, em uma mesa de plástico de um quiosque à beira mar. Em seguida, o dia-a-dia do italiano é apresentado. Diferente do que chamaríamos de uma rotina de "curtição" para alguém que está em liberdade, a reportagem conta como ele passa o dia inteiro caminhando pelas areias desertas da praia carioca nos dias de céu cinzento. Joga pedras no mar e brinca com um garoto de nove anos que deu ao seu amigo mais velho o apelido de "piradinho". Quando pergutado se continua a escrever e a ler ele responde simplesmente que não, muito raramente. "Passei quatro anos fazendo isso quando estava preso. Agora quero cozinhar". Cozinhar? De preferência ao som de um blues e preparando um peixe recém pescado que ele teve o prazer de escolher a dedo em um mercado a céu aberto. Ao narrar, parece até poético, mas a simplicidade da tarefa não deixou de me martelar a cabeça. "Por que não ir a um restaurante com um blues ao vivo, como os numerosos barzinhos de jazz que temos na altura da Paulista em São Paulo?" Porque a liberdade é simples. Liberdade é poder viver com o gosto que esquecemos de saborear a cada segundo que passa. Ir a pé ao trabalho assobiando, ou poder tomar uma ducha quente num sábado de manhã após uma noite romântica com a namorada. Simples, mas idescretívelmente livre. Battisti teve que ser preso para entender o que isso significa. Nunca olhei em seus olhos, mas tenho certeza de que eles carregam essa certeza.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

My Beautiful Dark Twisted Fantasy - Kanye West

Primeira coisa: peço desculpas pela demora nas postagens! Tenho tanta coisa pra falar mas me recuso a postar simplesmente por postar... Enquanto isso vou colocando aqui algumas dicas musicais =)

Para mim, o melhor álbum do ano de 2010 foi o "My Beautiful Dark Twisted Fantasy" do Kanye West. Ele simplesmente fez o "The suburbs" do Arcade Fire comer poeira, com um salto que foi muito além do que ele já tinha proposto como música. Eu sei que essa minha opinião é ousada, porque a maioria das pessoas pensa que rap e hip hop é tudo um lixo. Então eu vou aproveitar essa minha ousadia para fazer um desabafo: quem fala isso é porque nunca deu ao gênero a chance de mostrar o quão "feeling" ele pode ser. "Feeling" pra mim é quando o artista realmente sente o que ele tá tocando; deixa de lado todo o blá blá blá estético e técnico para fazer música de verdade! E o rap is all about feelling, porque sem isso nada pode fluir, vira tudo monotonia. Nesse sentido, esse álbum do Kanye West chegou pra calar a boca de todo mundo que faz questão de enquadrar o gênero como sendo "música de marginal" ou simplesmente "pobre em termos musicais" (seja lá o que eles queiram dizer com isso). Falo isso porque já cansei de sugerir músicas dele para as pessoas e a maioria me retorna um feedback dizendo "rap não é a minha praia" após 20 segundos de música!
Mas ok, vou deixar a minha revolta de lado e vou deixar o próprio Kanye se defender. Eu poderia colocar qualquer faixa do álbum aqui, porque todas são geniais, mas vou colocar uma das minhas preferidas e em seguida, caso ela desperte o interesse, proponho o curta que ele fez para o álbum. Lá estão presentes praticamente todas as faixas do álbum.

"Devil in a new dress"


O curta: "Runaway"

domingo, 24 de julho de 2011

Zoar

Duas semanas de viagem. Muita coisa na cabeça, muitas descobertas. Estou organizando esse brainstorm para poder postar aqui algo compreenssível.

Pra não cair na inatividade, tô postando umas músicas de um grupo que admiro muito: Zoar
Um pouco apocalypticas, as músicas deles parecem mergulhar dentro de nós para revelar um certo desespero misturado com esperança na humanidade. Muito feeling.

Breve descrição: "Gothic band producing ambient soundtracks."

Site do grupo

If you only knew:


Wakeworld:


Our way of life:

sábado, 18 de junho de 2011

Um vagão chamado mundo

Terça-feira; como de rotina estava pegando o metrô às 8h30 da manhã para ir ao trabalho. Ainda embalado pelo sono que não pôde ser terminado, mantinha meu pensamento no infinito, como todos ao meu redor. Perdido nesse coma, esbarro o olhar em uma pequena aranha abandonada no teto do vagão. Minúscula, quieta, esperando uma presa que tenho certeza de que nunca viria. Como ela foi parar ali em cima eu não fazia a menor idéia, mas ela estava lá, tranquila em seu pequeno mundo aracnídeo que se misturava com o nosso dia-a-dia agitado. Eu ainda tinha 10 minutos até o desembarque, então fiquei admirando aquele pequeno ser ingênuo que não sabia onde estava. "Pobrezinha, está com os dias contados", como costumamos dizer. E eis que percebi que a melhor alegria da minha nova amiga era justamente não ter consciência disso. Deu-se ao trabalho de construir uma teia que iria capturar unicamente suas pequenas patinhas solitárias, até que a próxima faxineira do metrô viesse para removê-la com uma vassourada cruel. Sem preocupação, sem desespero ela ficava lá, como se estivesse em qualquer outro lugar deste mundo: uma árvore, um campo florido, um vagão de metrô em Toulouse.
Ao descer, deixei a indefesa para trás, mas a sua inocente ingenuidade me acompanhou. "E nós, onde estamos?", acabei me perguntando. Acho que no fundo, não somos tão diferentes dela. Quem somos, para onde vamos, de onde viemos? Eis que a Terra se transformou em um grande vagão. Nesse instante, senti uma gratidão imensa por ser ignorante. Um grande presente, uma dádiva que nos faz acordar a cada dia e ir à luta - construir nossas teias, lutar para transformar este mundo, este grande metrô em um lugar melhor.




domingo, 29 de maio de 2011

Teia

Terminei um livro do Saint-Exupéry, "vol de nuit". Autor que admiro muito, não apenas pela sua biografia, mas sobretudo pela sutileza com que ele enxerga a vida. O livro em si é um pouco difícil de digerir no começo, mas o final justifica todo um enredo que antes parecia desconexo.

Enfim, o que quero compartilhar é que o livro coloca uma forte crítica a uma visão que defendi por muito tempo, de que as coisas carregam em si um sentido intrínseco que nos cabe enxergar, descobrir. Muito bonita mas pouco realista. Comecei a perceber isso conforme fui crescendo e vi a luta de cada um de nós, dia-a-dia, na busca de um sentido para este mundo. Essa questão no livro assume seu ápice na morte de um personagem; tema forte, mas que não chega a ser apelativo quando colocado pelas palavras de Exupéry. Quando é que começamos a sentir a perda de alguém? Aos poucos, quando percebemos que a dor não vem do fato em si, da morte, mas da teia de relações que deixam de fazer sentido para nós - o retrato na parede, o escritório vazio, o cachimbo que nunca mais deixou o criado mudo... São os sentidos que estão atrelados a cada um. Um sentido muito mais produzido do que intrínseco à cada objeto. E nesse processo criativo, nos tornamos então espécies de deuses, com o poder de dar sentido àquilo que tocamos, que criamos e que amamos? Não. Mas ao menos nos traz uma tranquilidade interior muito grande; não precisamos necessariamente nos tornarmos pessoas divinas que dizem compreender o sentido da vida para sermos alguém pleno interiormente. Somos todos humanos, cheios de sentidos, de relações; um ecossistema de dependências, causas e consequências. Mas ao mesmo tempo não somos livres de responsabilidades. Criar não se limita a produzir, mas a impulsionar essa grande teia para frente, que é a humanidade.

sábado, 14 de maio de 2011

La dentellière

"Il sera passé à côté d'elle,
juste à côté d'elle sans la voir.
Parce qu'elle était de ces âmes
qui ne font aucun signe, mais qu'il
faut patiemment interroger, sur
lesquelles il faut savoir poser le
regard.
Un peintre en aurait
fait autre fois le sujet d'un tableau
de genre. Elle aurait été

Lingère
Porteuse d'eau
ou Dentellière."

Foi mais que um filme, foi um sentimento de pureza que me fez querer voltar à escrever.
Homenagem àqueles cujos olhares são esquecidos todos os dias e que, cada qual à sua maneira, carregam uma história que acaba por se extinguir no infinito de nossas mesquinhas buscas pela normalidade.